quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Sobre a Filosofia da Finitude – primeiros escritos


Filosofia da finitude.
Cada vez que leio mais, mais me aproximo de uma possibilidade de narrar o trabalho que venho desenvolvendo. Um trabalho que foi se construindo. Não sei exatamente como começou. Acho que foi do medo de virar professora e nunca mais habitar um espaço cênico. Medo de virar professora e não ter mais de onde tirar o que sei ensinar. Também, coragem de encarar algo que acho que sei fazer e que nunca me arrisquei: coreografar, dirigir. Parece que sei da vida. Parece que sei olhar o mistério. É isso que me interessa, é a narrativa disso que acredito que pode contribuir de algum modo para desendurecer o peito das professoras. Para diminuir os saltos, amaciar as vozes metálicas, marejar os olhos fixos, tremer os ombros crispados, mover as virilhas intactas. Como escrever sobre isso sem cefaléias, tendinites e dores de minha escoliose? Escrever pensando em vocês, meus colegas agora, nesta contingência provocada pela Denise. Posso chamar isso de contingência? Que sorte a minha ter decidido fazer uma disciplina neste momento. Por que justo neste momento? E, a partir deste momento, torna-se irreversível.












Quando escrevi sobre dramaturgia do corpo (minha dissertação), apontei como uma condição fundamental para a configuração desta obra de arte, uma necessidade profunda do ator-dançarino em realizá-la. Essa necessidade que surge da busca pelo sentido da vida, de estar em cena e de criar. Nada se sustenta, o “texto” não se sustenta, se não há necessidade de dizê-lo, se não há sua vida implicada e imbricada em dizê-lo.
Estar em cena, esta ação de atualizar a dramaturgia corporal criada, é muito frágil. É um ato impreciso, que demanda uma técnica imprecisa, pela via negativa (Grotowski construiu em seu Teatro Laboratório uma proposta de técnica pela via negativa).


Minha leitura da Filosofia da Finitude de Mèlich me convoca a propor o estado de presentação do ator-dançarino como uma experiência exemplar da experiência poética da finitude. Vou me empolgando com as aproximações teóricas que começo a fazer, tenho que me cuidar para não virar tudo poesia e ficção da teoria. Mas tenho a experiência do hoje (hoje de manhã estivemos em mais uma escola) que coloca em meu olho, o olho de cada criança e de cada professora, que não me distancia do cheiro de escola, da poeira do chão da sala de aula, do riso constrangido e provocativo dos guris e das gurias. 


 Estou falando do Tatá Dança Simões, uma obra de dança-teatro que começou com a leitura de alguns textos do Simões Lopes Neto, autor pelotense, que escreveu sobre essa cidade, esse povo, nossos avós (tataravós, talvez). Não são quaisquer textos, são grandes obras, obras primas! Não porque os doutores disseram, mas porque produziram o que produziram em cada um dos alunos (dos cursos de Dança e de Teatro da UFPEL) que fazem parte do grupo, porque permitiram que cada um de nós fizesse o exercício da memória e da esperança. Exercício de reconhecer a herança da tradição e de buscar sentidos para isto. A partir disto, permitir que cada um seja narrador de sua experiência e da experiência do outro, um com o outro.
 Volto para a fragilidade deste narrar. O próprio narrar, o estar em cena, é uma atualização (transformada) da memória, da experiência. Como construir a cada apresentação (ou presentação) um espaço e tempo outros que produzem novos sentidos e novas transformações? Se não há a produção deste se refazer de cada um dos atores-dançarinos, a experiência não acontece, a narração se torna informação e o público vai ver movimentos desprovidos de sentido e vida.
 A cada dia, antes de começar o espetáculo, dá medo de não acontecer. Tudo conspira pra não acontecer. O cansaço dos atores-dançarinos, o despreparo de algumas professoras, a má vontade de outras, a falta de espaço apropriado, a hora do recreio, a desconfiança, a vontade de não se implicar. De repente, começa e acontece. Acredito que o que produz esse acontecimento é a ética implicada em cada movimento, em cada passo, em cada olhar.

 O Tatá Dança Simões é uma experiência de relação entre passado e futuro – relação com mitos, ritos e narrativas. E cada ator-dançarino, em sua presentação, vive a presença inquietante e a expõe. Se expõe.
E o silêncio dos alunos que nos assistem? Torço para que seja da falta da palavra para narrar a experiência. Neste momento fico em dúvida sobre a relevância de fazer uma conversa com esses alunos depois.



Maria Falkembach

Fotos: Rodrigo Migliorin